A USURPAÇÃO DAS ESTRADAS PÚBLICAS:CORRUPÇÃO E VIOLÊNCIAS DO PEDÁGIO
José Luiz Gaspar
Devem os usuários e deve a sociedade civil admitir que esses tráficos de poder legitimem a violência legal continuada? Devemos aceitar concessões que recebem (“mensalão”) a assinatura de deputados ‑ em troca de vantagens pessoais e políticas ‑ que derroguem direitos sociais sobre a propriedade de bens públicos, sobre o direito de ir e vir, sobre a segurança das estradas (pública e pessoal), sobre o direito de acesso ao trabalho e aos serviços públicos imanentes, sobre o direito de participar diretamente (através de plebiscitos e referendos) de qualquer mudança nos sistemas públicos que lhe toquem mediatamente a vida e seus direitos fundamentais?
Após esses concussionários acertarem privilegiar os “concessionários de obras e serviços públicos”, o “silêncio dos inocentes” passou a contaminar o poder judiciário, e então se limitariam os homens do direito às tecnicalidades jurídicas, disputando torneios dialéticos com afirmações retóricas, a exibir sua hermenêutica sobre o valor jurídico dos contratos das concessionárias, essas empresas beneméritas com direitos sobrepostos aos sociais.
Enquanto isso os usuários das rodovias devem enfrentar três violências no seu trânsito diário: a escorcha ilegítima dos pedágios, o arresto de sua propriedade pública e a ominosa ausência das autoridades para protegê-los.
A sociedade civil acompanha e paga a usurpação dos seus direitos; vê constrangida o arresto das rodovias a pretexto de uma outorga (ou doação inoficiosa?) de direitos públicos a empresas, simplesmente porque um governante corrupto expropriou as rodovias sob sua guarda e as entregou a um poder privado.
Mãos ao alto! O pedágio é um assalto!
Manifestações episódicas da Justiça nas últimas demandas e processos que envolvem a concessão de rodovias públicas a particulares dão medida da posição em que se encontram os membros do Poder Judiciário, em sua capacidade de representar os direitos essenciais da sociedade civil.
Ora confundidos com o Estado de onde surgem, ora tão-só pretendendo obrigá-lo à exação de leis ordinárias ‑ fazendo vistas baixas para um “ente desconexo” designado sociedade civil ‑, os juristas encapelados passaram a considerar os direitos sociais da população e a própria representação pública de governo como um enleio constitucional-legal, frente “às necessidades da produção de bens” ou de um sistema produtivo ‑ que no lugar de ser social passou a ser visto como expressão das vontades de “paciente-produtor” ‑ e ante a doação do serviço público por meio da concessão de serviços, que assim se colocam como donatários privados manentes.
O pedágio, nascido no Paraná de uma doação inoficiosa (ou simplesmente um “Panamá”), revestiu-se da liturgia legalizante com que qualquer indivíduo no poder público costuma entregar concessões públicas para as atividades privadas ‑ apenas se obrigando ao rito de obter o pode dos grupos oportunistas guindados à casa de escambos que são as assembléias (e câmaras legislativas). Dali se pôs a caminho de outro cenário, Judiciário, onde também se poderiam traficar influências econômicas e interesses privados e foi assim “legalizado” e sacramentado.
Nos tribunais criou-se, quando conveniente a uma acomodação, a práxis de fazer legalidade sem outra legitimidade que não seja o placet legislativo, numa tendência de subtrair à análise a legitimidade nos pleitos, subordinando-a à “faille à accomplir”. E, assim, os direitos populares, os interesses da sociedade civil são entregues às calendas, em nome das tecnicalidades jurídicas e dos “novos tempos” numa justiça “pós-moderna”, porém inspirada na nababia de “Xanadu”. Não é então de estranhar que passassem a reatos, primeiro os usuários de estradas e segundo o Estado “outorgante de concessão” originada em absurda proposição feita lei; ainda que aqui à testa o governo seja o acusado que pretende retomar seus direitos (que estão na sua representação pública).
A função de “resposta de todo o sistema social” que lhe compete dar (a essência da função jurídica), a decisão judicial não é evidentemente o discernimento e o arbítrio de um juiz, desembargador ou ministro. Notadamente quando se escamoteou sob uma doação inoficiosa a relação substancial entre os editais de concorrência e esses contratos malandros; e, objetivamente, agora quando a aplicação desses contratos viola direitos fundamentais dos usuários e dos cidadãos.
Tudo se passa como se o sistema judiciário não fosse um subsistema político, nomeado para em primeiro lugar representar a coletividade em seus interesses sociais; para árbitro em seus conflitos e suas dissensões; e como vogal dos direitos individuais em seus pleitos, diante da lei e dos costumes; e assim também como juiz dos poderes em face da lei.